Este é um projeto sobre fotolivros de literatura, um fenômeno que atrai um número progressivamente maior de investigadores e artistas de muitas áreas. Definir um fotolivro como “um livro que contém um conjunto de imagens fotográficas ordenadas com determinado ritmo visual, de modo a produzir uma sensação de narrativa próxima à literatura e ao cinema”, (ver Museo Reina Sofía: Fotolivros) não é suficiente para distingui-lo, ontologicamente, do álbum ou do catálogo de fotografias. É necessário uma discussão mais sistemática sobre “teorias e modelos” para estabelecer um espaço conceitual robusto capaz de distinguir o fotolivro de literatura como categoria, gênero, ou sistema semiótico particular. Perguntas frequentemente elaboradas, em diversos domínios teóricos, incluem: como definir fotolivros? Fotolivros de literatura constituem um gênero literário? Por que álbuns de fotografia, catálogos ou livros de/com fotografia não são fotolivros? Para Maffei, “livro ilustrado, livro de pintor, livro de arte, livro objeto, livro de artista – [são] definições amplificadas por um uso diferente em diferentes idiomas – são algumas das caixas críticas em que se pretende classificar o assunto” (MAFFEI, 2014: 12). Estão entre as áreas mais interessadas neste conjunto de problemas: Estudos Interartes, Artes Comparativas, Literatura Comparada, Estudos de Intermidialidade, Estudo das Mídias, Teoria da Fotografia.
Os fotolivros estão, para muitos autores, entre os mais intrigantes fenômenos intermidiáticos e intersemióticos desenvolvidos no último século (ver FERNANDES, 2016; FERNANDES et al, 2015; LAMPERT, 2015; ENTLER, 2015). Eles são correntemente descritos como uma complexa rede “de relações entre fotografias, textos e outros materiais visuais” (FERNÁNDEZ, 2011: 16) e fazem “parte de importantes inovações literárias do século XX” (SILVA, 2013: 8). Eles existem “quase desde o nascimento da própria fotografia, em 1839 – foi inventado mais ou menos como um meio de publicação, e, já por volta de 1843, pioneiros vitorianos como Anna Atkins e William Henry Fox Talbot começavam a colar fotografias em álbuns e livros. Contudo, apenas recentemente se percebeu o real significado desse tipo de livro” (BADGER, 2015: s.p.), tipicamente intermidiático. Muitos autores definem intermidialidade como “cruzamento de fronteiras midiáticas” (RAJEWSKY, 2005: 44; 2012: 52) e “relações intermodais nas mídias” (ELLESTRÖM, 2010: 37). Para Elleström (2010), “toda relação intermidiática parece ser mais ou menos uma anomalia onde se presume que as diferenças essenciais que caracterizam determinada mídia são transformadas, combinadas ou misturadas de maneira particular” (ELLESTRÖM, 2010: 14). Conforme afirma Clüver (2011: 15), os estudos de intermidialidade (intermedial studies) investigam relações entre textos individuais e específicos, denominados por Rajewsky (2012: 56) de “configurações midiáticas”. Para Müller, são relações que ocorrem entre sistemas fluidos, como “fusão e interação de processos e procedimentos midiáticos distintos” (MÜLLER, 1998: 38 apud CLÜVER, 2006: 20). Embora os fotolivros de literatura não possam ser inteiramente caracterizados a partir do que se pode apreender deles como casos de intermidialidade, diversas categorias elaboradas na área (intermedial studies) permitem-nos estruturar com maior clareza os principais problemas sobre as relações entre os processos e sistemas que caracterizam este fenômeno.
O termo fotolivro tem sido usado para designar um fenômeno que inclui um extenso e variado conjunto de publicações fotográficas, incluindo diversas formas de criação, impressão, publicação e divulgação de material fotográfico. Segundo Shannon (2010: 5), uma definição precisa e objetiva de fotolivros, com certo caráter social, e também epistêmico, deveria incluir “publicações criadas em diferentes circunstâncias, dentro de uma variedade de pontos de vista políticos, sociais e estéticos, resultando em uma homogeneização de uma vasta gama de material fotográfico já publicado”. Isto ainda não foi elaborado. Para Badger e Parr (2004: 6), que ocupam uma posição mais estruturalista, trata-se de “um livro – com ou sem texto – onde a mensagem principal da obra é transmitida através de fotografias. É um livro de autoria de um fotógrafo ou de alguém editando e sequenciado o trabalho de um fotógrafo, ou até mesmo uma quantidade de fotografias. Fotolivros possuem um caráter específico próprio, distinto daquele de impressões fotográficas”. Shannon destaca, sem deter-se à noção de “função artística”, as características artísticas do fotolivro e afirma que “o termo ‘fotolivro’ tipicamente define um tipo de livro criado para executar uma função primariamente artística” (SHANNON, 2010: 55). Segundo Maffei, que ocupa a mesma linha de desenvolvimento, “no final do século XIX, já existe um livro que não é apenas e exclusivamente um livro ilustrado até a exaustão estética, mas uma entidade essencial e analítica na qual as características visuais, a composição tipográfica particular, os espaços em branco e até mesmo o formato são inseparáveis do conteúdo. Livro não mais como suporte para uma operação artística, mas como um objeto de arte em si” (MAFFEI, 2014: 12-13).
O fotolivro é, consensualmente, um fenômeno estético intermidiático. Mais do que uma compilação de imagens fotográficas, sua organização é caracterizada pela densa colaboração entre sistemas semióticos complexos. O texto (prosa ou poesia), o design gráfico, a tipografia, a distribuição sintática-visual de todos os componentes impressos, todos são decisivos nos fotolivros. Para Badger e Parr (2004, ver também FERNÁNDEZ, 2011: 13), tais publicações são mais “ambiciosas” do que livros ilustrados com fotografias. “Ambição” refere-se aqui à preocupações estéticas relacionadas ao desenvolvimento multimodal destes experimentos. Para Boom e Prins (1989: 12), o “fotolivro é uma forma autônoma de arte, comparável a uma escultura, a uma peça de teatro, ou a um filme. As fotografias perdem o seu próprio caráter de coisas ’em si’ e são traduzidas em tinta de impressão, transformadas em partes de um evento dramático chamado livro”. O livro torna-se “um suporte específico cuja experiência perceptiva, estética, se define pelo casamento estreito, poroso, entre fotografia e livro, fotografia e texto, fotografia e design; ou seja, é uma imagética fotográfica que se expande ou se hibridiza com as condições plásticas que a diagramação especial e o design oferecem, assim como a combinatória afinada de visualidade e textualidade” (NAVAS, 2017: 85-86).
O fotolivro de literatura, que é resultado de um tipo correlato de experimentação, equivalente ao fotolivro em geral, sofre muito decisivamente a ação e a influência de sistemas verbais de articulação. Observa-se, portanto, um incremento considerável de complexidade construtiva e interpretativa, relacionada a função poética, em termos jakobsonianos, da linguagem verbal. Parte da dificuldade analítica prevista vincula-se ao aparato metodológico heterodoxo exigido para abordagem do fotolivro de literatura, algo que posiciona-se entre Crítica e Teoria da Literatura, Teoria da Fotografia, Semiótica da Literatura e Visual.
Testemunhamos, na última década, um aumento muito considerável na produção de textos acadêmicos sobre fotolivros (FERNÁNDEZ, 2011: 11; SHANNON, 2010: 60). Eles evidenciam uma variada e eclética coleção de métodos de descrição e análise, muito diferente do que se observa em “trabalhos dedicados ao estudo da imagem fotográfica e/ou de fotografias individuais” (FERNÁNDEZ, 2011: 11). Os trabalhos críticos e teóricos estão dedicados a detalhar o caráter intermidiático que tipifica o fenômeno. As abordagens, em geral, destacam aspectos multimodais, e a densa colaboração de diversas mídias e sistemas semióticos nas obras (PARR e BADGER, 2014, 2006, 2004). Contudo, ainda são escassas as investigações dedicadas exclusivamente aos fotolivros de literatura. Este é o foco deste projeto.